A cor ocre da pobreza, por Mauro Santayana
Não é de meu hábito, mas inicio estas reflexões com reminiscências pessoais. No início dos anos 40, em instituição do Estado para meninos sem lar, convivi, diariamente, durante quase três anos, com mais de 200 companheiros, brancos, negros, mulatos, cafuzos. De vez em quando, recordo-me de um deles, e tenho dificuldade em lembrar exatamente a cor de sua pele. Em minha memória, só de alguns as características físicas, por inusitadas, se destacam. De modo geral deles me lembro com uma só cor, a cor da pobreza, algumas vezes tingida pela esperança, e, outras vezes, pálidas de permanente tristeza, que a solidariedade do grupo, discreta, quase muda, aliviava. Naquele pequeno mundo, em que tínhamos o mínimo – e nesse mínimo, a que não faltava a palmatória, não se incluíam sapatos, nem escovas para os dentes – o nosso consolo era o sonho comum de liberdade.
Penso muito nisso, quando, em nome da igualdade, pretendem instituir no Brasil uma noção que a ciência rejeita, a de etnias humanas. Fico imaginando se, naquela comunidade a que pertenci, houvesse cotas cromáticas, a fim de que alguns dispusessem de atendimento especial pelos professores, tivessem um prato mais cheio, ou recebessem enxadas mais leves para o trabalho na lavoura. Se assim fosse, a nossa miséria seria insuportável. Os guardas, homens igualmente pobres, eram também negros, brancos, mestiços, e atuavam de acordo com sua personalidade, dois ou três com simpatia para com o nosso sofrimento, alguns com indiferença, outros com crueldade.
Sabemos que há também no Brasil o preconceito de cor, contra o qual há leis, e é necessário combater esta e todas as outras formas de discriminação. Em razão disso, é inadmissível o reconhecimento pelo Estado da diferença, mediante o proposto Estatuto da Igualdade Racial, que é claramente inconstitucional. O artigo V da Constituição, cláusula pétrea da Carta, não deixa dúvida: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade…”. É natural e humano que os negros, submetidos secularmente à opressão, anseiem pelo ressarcimento histórico. Não se duvida da boa intenção do autor do projeto, que se destaca em sua atuação no Senado. Muitas vezes, a ânsia de justiça leva à ingenuidade. Se o Estatuto for aprovado, a harmonia entre os brasileiros estará ameaçada. Muitos negros não defendem a legislação proposta, porque acreditam que ela provocará desentendimentos entre os pobres, e se baseiam na experiência comum de que os que se diferenciam se excluem. Disso sabem, com sua penosa história, alguns povos antigos.
Só há duas raças humanas, e são raças sociais, não biológicas: a raça dos oprimidos e a raça dos opressores. Durante a escravidão, os brancos pobres dispunham de liberdade formal, estavam livres do tronco e das marcas a ferro, mas eram também oprimidos. Alguns serviam como feitores de escravos, mas os feitores mais cruéis, de acordo com depoimentos antigos, eram os próprios negros. E os negros comprados nas costas africanas eram capturados e vendidos por outros negros. A cor da pele não torna os homens melhores ou piores. Não os faz mais inteligentes ou menos inteligentes, mais honrados ou menos honrados.
É razoável que haja cotas para os pobres, negros e brancos, egressos das escolas públicas. O sistema atual de vestibular privilegia os que foram adestrados para responder aos questionários, mas não identifica os mais aptos. A experiência vem demonstrando que, nos cursos universitários, os bolsistas do Prouni, negros e brancos, se distinguem por sua aplicação e inteligência. Sabem que ali está a sua oportunidade e procuram não desperdiçá-la. A democracia, até onde podemos entendê-la, se baseia na oportunidade igual e no mérito. A qualificação das pessoas se faz na base de sua capacidade. As leis de Nurenberg classificavam os homens pela cor da pele, medidas do crânio e textura dos cabelos – e exigiam a identidade “racial” nos documentos. Mas foram revogadas em 1945.
O que existe, sim, é intolerável injustiça social que, em alguns casos, o preconceito exacerba e a lei coíbe, quando é aplicada. Que todos tenham o mesmo direito, homens e mulheres, negros e brancos, mestiços ou albinos. Eles constituem a única raça, a raça dos homens.
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