A proposta segue agora para a Comissão de Finanças e Tributação, onde será analisada a viabilidade financeira da matéria. De acordo com o texto aprovado, o Estado arcará com os custos do desenvolvimento e da educação da criança até que venha a ser identificado e responsabilizado o genitor (o estuprador) ou que a criança seja adotada por terceiros. Se identificado o responsável pelo estupro, ele, além de responder criminalmente, deverá pagar pensão ao filho por período a ser determinado.
A iniciativa foi recebida com protestos por entidades feministas favoráveis à legalização do aborto. Elas alegam que ao beneficiar mulheres vítimas da violência com uma ‘bolsa’, o Estado está sendo conivente com a violência. As entidades afirmam que a proposta abre pressupostos para que estupradores reivindiquem direitos de pai e que a intenção da iniciativa é dificultar o acesso de mulheres vítimas de estupro aos procedimentos públicos de aborto legal.
“Essa bolsa é uma forma das mulheres não recorrerem ao aborto legal. É uma iniciativa muito grave, pois dá a um criminoso os direitos de pai e, além disso, institui a tortura, já que a mulher será obrigada a ficar nove meses carregando o bebê vítima de estupro. Esse projeto é retrógrado e fundamentalista”, disse a coordenadora nacional da Articulação das Mulheres do Brasil e da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, Rogéria Peixinho.
A prática do aborto é proibida no Brasil. O Código Penal brasileiro, no entanto, prevê duas exceções para permitir essa prática. O art. 128 do Código Penal permite a realização de aborto em caso de gravidez resultante de estupro ou em ocasiões de aborto necessário para salvar a vida da gestante. Esse direito foi instituído na década de 1940, quando entrou em vigência o Código Penal.
Segundo a relatora da proposta, deputada Solange Almeida (PMDB-RJ), o projeto não modifica o que está previsto no Código Penal, apesar de manter o artigo que prevê que “é vedado ao Estado ou a particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores”.Os que são favoráveis à matéria afirmam que o benefício para gestantes vítimas de estupro é uma solução para mulheres de baixa renda que não desejam fazer o aborto e uma forma de responsabilizar os autores da violência.
“Hoje, o aborto é apresentado como uma única solução. Essa é uma alternativa para mulheres que são contra o aborto, e isso não fere os direitos das mulheres. O estupro já é uma violência e hoje elas só têm a escolha de recorrer à outra violência, que é o aborto. Muitas vezes, o estupro é cometido por alguém dentro de casa, que tem condições e deve ser responsabilizado pelo desenvolvimento da criança”, afirma a presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, Lenise Garcia.
Células-tronco correm risco
Apesar da polêmica mais evidente estar em torno da “bolsa estupro”, o projeto é bem mais abrangente e traz outros pontos controversos. Ele cria o Estatuto do Nascituro, estabelecendo os direitos e deveres que envolvem o nascituro – “ser humano concebido, mas ainda não nascido”, incluindo os seres humanos concebidos “in vitro”, mesmo antes da transferência para o útero da mulher.
O projeto, no entendimento do deputado e médico Darcisio Perondi (PMDB-RS), afeta diretamente as pesquisas com células-tronco e pode inviabilizar esse tipo de estudo científico. O parlamentar explica que, ao dar ao nascituro a natureza humana – o que está previsto no art. 3º –, o projeto confere aos embriões in vitro (objetos da pesquisa de células-tronco embrionárias) o direito inviolável à vida, não sendo possível, portanto, realizar procedimentos que coloquem em risco a existência desses embriões.
“Como o projeto estabelece o início da vida desde a concepção, tudo o que mexer com o nascituro é criminoso. No banco de embriões para pesquisas de células-tronco, por exemplo, alguns embriões, depois de um período, podem ser descartados. Com esse projeto, cientistas e médicos serão todos criminosos”, diz Perondi. “Onde começa a vida é um dogma que nem a ciência tem certeza de nada, agora uma lei vai decidir”, constata.
Perondi foi autor de um voto em separado, que contrapôs vários pontos do projeto. Segundo o deputado, o PL afronta, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). Em março de 2008, o ministro Carlos Ayres Britto considerou improcedente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que questionava a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, prevista no art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/95). O ministro sustentou a tese de que, para existir vida humana, é necessário que o embrião tenha sido implantado no útero da mãe (veja aqui o voto completo).
“Diferentes tribunais constitucionais vêm reconhecendo o direito de se proteger a vida do nascituro. Entretanto esse direito não se dá na mesma intensidade com que se tutela o direito à vida das pessoas humanas já nascidas. Afirmar que o nascituro deve ter seus direitos reconhecidos no mesmo grau que os direitos de uma criança ou uma mulher é ignorar elementos básicos da personalidade como a consciência, o nascimento com vida, a participação em uma comunidade política”, defendeu Perondi.
Quando começa a vida
A proposta aprovada é um substitutivo elaborado pela deputada Solange a partir do projeto do deputado Luiz Bassuma (PV-BA) (PL 478/2007) e outros três apensados (PL 489/2007, PL 1763/2007 e PL 3748/2008). Na avaliação de Bassuma, o projeto aprovado é muito importante e vem corrigir uma omissão feita pela Constituição que “não estabeleceu quando se começa a vida”. “Ele vem corrigir isso. Ele tem essa principal finalidade que é mostrar o advento da vida”, considerou Bassuma.
Mas, para a assistente técnica do Centro de Estudos Feministas de Estudo e Assessoria (Cfemea) Kauara Rodrigues, “afirmar que o nascituro é uma pessoa só é possível a partir de uma determinada crença, filosofia e entendimento científico”. A assistente explica que há várias teorias sobre quando se inicia a vida e que, portanto, o projeto fere direitos e garantias fundamentais de liberdade de crença.
“Não há consenso nem entre cientistas de onde se começa a vida. O projeto fere princípios, direitos e garantias fundamentais que permitem a liberdade de crença, de pensamento e a igualdade dos sujeitos. Nós consideramos o projeto um dos grandes retrocessos para a legislação brasileira”, disse Kauara.
Intervenções
O projeto confere ao nascituro “plena proteção jurídica”. Essa proteção abarca os direitos à vida, à saúde, à alimentação, ao desenvolvimento, à integridade física, à dignidade, à liberdade, ao respeito e à família. A proposta coloca como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro esses direitos. Segundo o projeto, nenhum “ser humano concebido, mas não nascido” será objeto de “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A proposta prevê, inclusive, que aos nascituros deverão ser destinadas políticas públicas, que permitam um desenvolvimento sadio e harmonioso e um nascimento em condições dignas. O projeto assegura, até mesmo, o atendimento dos nascituros através do Sistema Único de Saúde (SUS). “É para nós um projeto de máxima importância, porque entendemos que a vida não se restringe a troca de moléculas. Existe uma ligação espiritual que se inicia desde o momento da concepção e esse projeto protege essa vida”, avalia o diretor da Federação Espírita Brasileira, César Perri.
Entre os direitos do nascituro, está a proibição de serem utilizados métodos para diagnóstico pré-natural que causem à mãe ou ao nascituro riscos desproporcionais ou desnecessários. Na avaliação do deputado Dr. Rosinha (PT-PR), parlamentar contrário à proposta, esse dispositivo atenta contra a vida, pois impede que sejam realizadas intervenções cirúrgicas em fetos com patologias cardíacas, por exemplo.
“Esse estatuto depõe contra a vida do feto e da mãe. Algumas patologias cardíacas podem ser corrigidas com intervenção cirúrgica ultra-uterina. Não podendo ser corrigidas, você pode colocar em risco não só a vida do feto como também da mãe”, disse Dr. Rosinha.
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